Retomamos a temática dos anquilossauros, desta vez abordando a sistemática e uma breve história deste grupo de dinossauros couraçados, introduzido de passagem no post anterior sobre este tema.
Etimologicamente, Ankylosauria deriva do grego antigo “ankúlos”, fusão, aludindo à ossificação extensa e fusão óssea, nomeadamente ao nível do crânio ou da ponta da cauda nalguns taxa, que caracteriza estes dinossauros, e “sauros”, lagarto. Esta característica única e distintiva foi reconhecida formalmente no início do século XX, em 1908, por Barnum Brown, paleóntologo norte-americano ao serviço do American Museum of Natural History (AMNH), em Nova Iorque, ao descrever o Ankylosaurus, agrupando e nomeando a família Ankylosauridae, que Brown considera como um subgrupo dentro dos Stegosauria, que inclui dinossauros como o Stegosaurus ou o português Miragaia longicollum. Apenas em 1923 (Osborn, 1923) é utilizado pela primeira vez o nome Ankylosauria, para o grupo que inclui todos os dinossauros couraçados mais próximos de Ankylosaurus do que Stegosaurus. Ankylosauria e Stegosauria tornam-se assim duas linhagens próximas (em termos evolutivos também designados como grupos irmãos), mas independentes (Fig. 1).
Figura 1: Árvore filogenética dos Thyreophora mostrando as relações evolutivas entre os seus membros, nomeadamente Ankylosauria e Stegosauria. Pereda-Superbiola et al., 2015. |
Fósseis
de anquilossauros eram já conhecidos antes de Brown e, nalguns casos, revestem-se
de importância histórica. O século XIX marca o início da Paleontologia moderna,
desde logo com a criação do termo dinossauro por Richard Owen em 1842. Um dos
três dinossauros utilizados por Owen para criar os Dinosauria foi um anquilossauro,
o Hylaeosaurus armatus Mantell 1833 (Fig. 2), do Cretácico Inferior de
Inglaterra. Na América do Norte, o primeiro fóssil de um dinossauro norte-americano
formalmente descrito foram dentes de um anquilossauro (Leidy, 1856). De facto, na
segunda metade do século XIX são inúmeros os registos de anquilossauros. Alguns
exemplos são o Polacanthus foxii (Owen 1865), do Cretácico Inferior de
Inglaterra, o Struthiosaurus austriacus Bunzel 1871, do Cretácico
Superior da Áustria, o Nodosaurus textilis Marsh 1889, do Cretácico
Superior dos EUA, ou mesmo o Sarcolestes leedsi Lydekker 1893, actualmente
o anquilossauro mais antigo conhecido, do Jurássico Médio de Inglaterra.
A evolução e cronologia dos Ankylosauria serão abordadas num post futuro, bem como uma visão mais detalhada de alguns deste taxa.
Figura 1: Litografia de Hylaeosaurus armatus, a primeira ilustração científica de um anquilossauro. Mantell, 1833. |
A
classificação actualmente aceite tem a sua origem durante este período de
grande desenvolvimento científico. Othniel Marsh, um dos protagonistas da célebre
Guerra dos Ossos que gerou uma onda de novos dinossauros nos fins do séc. XIX,
como o Allosaurus, Triceratops, Stegosaurus ou o Diplodocus
entre muitos outros, foi o primeiro a tentar estabelecer uma hierarquização
para os anquilossauros. Em 1890, cunha o termo Nodosauridae, seguindo a sua descrição
do Nodosaurus textilis. Contudo, Marsh apenas classificou como um
subgrupo dentro dos Stegosauria. Desde cedo se constatou a proximidade entre anquilossauros
e estegossauros, ambos partilhando o desenvolvimento de placas ósseas ao longo
do corpo. Isto levou a que, em 1915, Franz Nopcsa, aristocrata húngaro de
origem romena e um dos mais prolíficos e importantes paleontólogos do século XX,
proponha o nome Thyreophora, ou “portadores de escudo”, para agrupar ambos os
grupos de dinossauros (Fig. 1). Só em 1998, contudo, o grupo é definido formalmente
como o clado que inclui todos os dinossauros mais próximos de Ankylosaurus,
Stegosaurus, do que de Triceratops (Sereno, 1998).
Como já referido anteriormente, em 1923 surge pela primeira vez o nome Ankylosauria, da autoria do norte-americano Henry Fairfield Osborn, embora o primeiro diagnóstico anatómico publicado e proposta de separação entre anquilossauros e estegossauros como grupos distintos surja pela mão de Alfred Sherwood Romer (1927), um dos mais influentes paleontólogos do séc. XX. Depois de um período de alguma estagnação em meados do século passado, seriam precisos 50 anos, e quase 90 desde Marsh, com o extenso trabalho desenvolvido por Walter Coombs (1978), para que se estabelecesse de forma consensual e aprofundada a classificação do grupo, com Nodosauridae e Ankylosauridae como grupos irmãos de anquilossauros e sucessivos ramos (Fig. 1). 20 anos volvidos sobre os trabalhos de Coombs, Paul Sereno (1998) define formalmente Nodosauridae como todos os anquilossauros mais próximos de Panoplosaurus do que de Ankylosaurus, e de forma semelhante, Ankylosauridae como todos os anquilossauros mais próximos de Ankylosaurus do que de Panoplosaurus. Esta classificação, corroborada com observação de espécimes entretanto descobertos e com o advento de métodos filogenéticos, fundamenta-se em diferenças anatómicas observáveis nos diversos fósseis existentes, por exemplo ao nível do crânio (Vickaryous et al., 2004; Arbour & Currie, 2016). Entre outras os anquilossaurídeos exibem uma ornamentação craniana mais rugosa do que os nodossaurídeos, enquanto a margem posterior do crânio relativamente à distância entre as órbitas é mais estreita em nodossaurídeos do que em anquilossaurídeos (Fig. 3). A característica mais conhecida dos anquilossauros, a maça na ponta da cauda, é exclusiva a alguns membros mais derivados dos Ankylosauridae, como o Ankylosaurus.
Figura 3: Crânios de anquilossauros representativos dos dois grupos principais de anquilossauros. Esquerda, Panoplosaurus mirus, um nodossaurídeo, em vista dorsal (topo) e ventral (fundo); direita topo, Saichania chulsanensis, em vista dorsal; direita fundo, Ankylosaurus magniventris, em vista ventral. Escala: 10 cm. Adaptado de Vickaryous et al., 2004. |
Estes subgrupos ramificam-se por sua vez em ramos sucessivamente mais derivados. Os Ankylosauridae subdividem-se ainda, de forma geral e na sua maioria, em Ankylosaurinae (todos os anquilossaurídeos mais próximos de Ankylosaurus do que Shamosaurus) e Shamosaurinae (todos os anquilossaurídeos mais próximos de Shamosaurus do que Ankylosaurus) (Arbour & Currie, 2016). Os Nodosauridae subdividem-se por sua vez em Nodosaurinae (todos os nodosaurídeos mais próximos de Panoplosaurus do que Struthiosaurus) e Struthiosaurinae (todos os nodosaurídeos mais próximos de Struthiosaurus do que Panoplosaurus. Várias das ramificações internas a estes continuam por nomear requerendo ainda mais resolução nas análises para se identificarem clados sucessivamente mais derivados. Abaixo apresenta-se a sistemática mais aceite para Ankylosauria.
THYREOPHORA Nopcsa 1915
ANKYLOSAURIA Osborn 1923
ANKYLOSAURIDAE Brown 1908
ANKYLOSAURINAE Brown 1908
ANKYLOSAURINI Arbour & Currie 2016
SHAMOSAURINAE Tumanova 1983
NODOSAURIDAE Marsh 1890
NODOSAURINAE Abel 1919
STRUTHIOSAURINAE Kirkland et al. 2013
Muitas questões permaneceram (e permanecem ainda) por responder. Uma das mais prementes prende-se com taxa, alguns deles ainda pouco estudados, na base da separação entre Ankylosauridae e Nodosauridae, e a sua relação evolutiva com ambos os ramos (ver post sobre o Dracopelta zbyszewskii, um anquilossauro do Jurássico Superior português). Alguns destes anquilossauros apresentam características presentes quer em anquilossaurídeos quer em nodossaurídeos, muitas vezes dificultando e ofuscando as definições dos próprios grupos. Esta questão foi reconhecida logo nos inícios do século XX, quando Wieland (1911) salientou a presença de caracteres intermédios em alguns anquilossauros mais derivados, isto é, anquilossaurídeos e nodossaurídeos, e propôs um grupo adicional, os Polacanthidae, assim nomeado devido ao Polacanthus. Este anquilossauro e outros possuíam características que dificultavam a sua definição como membro de um dos dois grandes ramos de anquilossauros, como por exemplo a presença de um escudo sobre a zona pélvica. Em anos posteriores, mais descobertas e estudos mais aprofundados conseguiram resolver questões associadas a alguns espécimes mais incompletos, deixando cair no esquecimento a proposta de Wieland, por outro lado, mais fósseis e a utilização de métodos filogenéticos complementares expuseram uma crescente diversidade de anquilossauros que relançaram a discussão sobre as relações evolutivas de determinados taxa. De tal forma que, em 1998, Kirkland ressuscita a noção de um subgrupo adicional de anquilossauros, mas desta vez como um subgrupo de anquilossaurídeos basais, os Polacanthinae. Este nome tinha sido utilizado por Lapparent e Lavocat (1955), mas para uma subfamília de nodossaurídeos. Carpenter (2001) reconhece também a existência de um grupo de anquilossauros para além dos dois grupos aceites, mas propõe um nível taxonómico equivalente àqueles em vez de subordinado a um deles, recuperando Polacanthidae. A inconstância na classificação destes taxa continua até aos dias de hoje, com trabalhos recentes a resolverem, mas com grande incerteza, a posição de muitos destes anquilossauros basais (Thompson et al., 2012; Arbour & Currie, 2016).
Novos
e mais completos espécimes e uma reformulação detalhada das definições
anatómicas de cada grupo são fundamentais para que os Ankylosauria estejam mais
bem resolvidos, em particular na base do grupo, e para que compreendamos mais
sobre a sua evolução como ramo da vida ao longo de mais de 100 milhões de anos.
References:
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