quarta-feira, abril 08, 2020

Dracopelta zbyszewskii, o dragão couraçado português


No seguimento do post do passado dia 28 de Fevereiro, venho agora abordar com um pouco mais de detalhe o único anquilossauro português conhecido, o Dracopelta zbyszewskii Galton 1980. Este dinossauro tem uma história interessante e até algo confusa, começando desde logo pela sua proveniência, como veremos adiante.

Em 1980, o paleontólogo britânico Peter Galton, durante uma visita aos Serviços Geológicos de Portugal, é recebido por Georges Zbyszewskii, geólogo francês de origem russa estabelecido em Portugal, responsável pela cartografia geológica de Portugal e um dos mais prolíficos geólogos e paleontólogos do século XX em Portugal, que o encoraja a estudar, entre outros, fósseis de um dinossauro couraçado que se encontravam nas colecções dos Serviços Geológicos (actualmente o Laboratório Nacional de Energia e Geologia), que seria baptizado nesse mesmo ano como Dracopelta zbyszewskii. O nome científico é uma composição de “draco", do Latim "dragão", "pelta", do Latim "escudo", alusivo um pequeno escudo utilizado por soldados da Grécia Antiga, e "zbyszewskii", em homenagem a Georges Zbyszewskii, que foi também o responsável pela escavação, recolha e preparação do espécime (Galton, 1980; Pereda-Superbiola et al., 2005).
Peter Galton. Fonte: Octávio Mateus.

Georges Zbyszewski. Fonte: LNEG.

Apesar de descrito em 1980, o espécime foi descoberto, segundo Pereda-Superbiola et al. (2005), algures entre o fim de 1963 e o início de 1964, durante a construção de uma estrada, próximo de Ribamar (Galton, 1980). Na verdade, a descoberta terá ocorrido uns anos antes, por volta de 1958/59, já que, segundo Manupella (Mateus, 2005, verbatim Junho de 2002), em 1962 o espécime já estaria a ser preparado. No entanto, a localização exacta da descoberta foi alvo de debate durante décadas. Isto deveu-se ao facto de existirem duas povoações denominadas Ribamar na Região Oeste, separadas por cerca de 25 quilómetros, uma no concelho de Mafra e outra no concelho da Lourinhã. A descrição inicial de Galton identifica a localização de proveniência do espécime (designada como localidade tipo) apenas como Ribamar na Costa Oeste, de rochas do Kimmeridgiano (Jurássico Superior). Apenas em 2005, com o trabalho de Pereda-Superbiola et al., é clarificada a localização precisa, como sendo perto da Praia do Sul, Assenta, Torres Vedras, e, como tal, mais próxima de Ribamar da Ericeira, Mafra, contrariamente ao que era assumido por Galton, que apontava Ribamar da Lourinhã, mais a Norte, como a localização do espécime. Uma das razões para esta confusão é a presença das mesmas rochas em ambos os locais, especificamente rochas da Formação da Lourinhã, com cerca de 150 milhões de anos. Recentemente, com trabalho de reconhecimento no terreno e tendo por base a informação já conhecida, foi possível redescobrir e revisitar a localidade original do espécime, hoje limitada a um pequeno afloramento na beira de uma estrada na zona da Assenta, Torres Vedras.

Mapa geológico regional com a localização do holótipo do D. zbyszewskii (Pereda-Superbiola et al., 2005).
A idade é um dos aspectos mais fascinantes deste anquilossauro. A sua ocorrência em rochas do Jurássico Superior, mais precisamente do topo da Formação da Lourinhã, e, portanto, do Titoniano superior, é extremamente rara a nível mundial para este grupo de dinossauros, conhecendo-se apenas mais dois taxa para esta altura, ambos dos Estados Unidos da América, da Formação de Morrison, contemporânea e equivalente geológico à Formação da Lourinhã (Mateus, 2006; Mateus et al., 2017), o Mymoorapelta maysi Kirkland & Carpenter 1994 e Gargoyleosaurus parkinorum Carpenter, Miles & Cloward 1998, o que levanta diversas questões paleobiogeográficas, nomeadamente a relação filogenética entre as formas norte-americanas e o D. zbyszewskii, e por sua vez, com outros anquilossauros mais tardios. 

Até recentemente (ver post), o holótipo (espécime de referência para uma dada espécie) de D. zbyszewskii era o anquilossauro mais completo da Europa para o Jurássico. Consiste num tórax parcial e articulado, composto por 13 vértebras dorsais e costelas associadas, bem como armadura dérmica ou osteodermes (Galton, 1980). A anatomia das vértebras e das costelas e principalmente a presença de 5 tipos diferentes de osteodermes (desde pequenas placas isoladas do tamanho de uma moeda a grandes placas laterais semi-triangulares) ao longo do tórax foram caracteres suficientes para concluir de que se tratava de um dinossauro novo até então desconhecido em Portugal e a classificação como um anquilossauro, um grupo cujo membro mais conhecido é o Ankylosaurus, do Cretácico Superior da América do Norte, caracterizado por uma armadura óssea que cobria todo o corpo e pela presença de uma maça na ponta da cauda.
Holótipo de Dracopelta zbyzewskii em exposição no Museu Geológico, em Lisboa. Foto: João Russo.

Em 2005, material adicional é descrito, desta vez um autopódio incompleto, isto é, a extremidade de um membro, com três dedos (II, III e IV) e três metapódios (correspondente a metacarpos ou metatarsos). Estes autores identificaram este material como uma possível mão direita, com base no número e anatomia das falanges presentes nos dedos, e confirmam o diagnóstico de Galton, 25 anos antes.
Autopódio de D. zbyszewskii (possível mão direita), em vista ventral. Da esquerda para a direita: dígitos II, III, e IV. Modificado de Pereda-Superbiola et al., 2005.

O aspecto mais fascinante e ao mesmo tempo mais desafiante deste dinossauro é a sua classificação taxonómica incerta e o seu posicionamento filogenético problemático relativamente a outros anquilossauros. Diversos autores consideraram-no ou como um nodosaurídeo (Nodosauridae é um dos principais ramos de anquilossauros, sem maça na cauda) (Galton, 1980, 1983; Vickaryous et al., 2004), como um polacantídeo incertae sedis, isto é, um polacantídeo de posicionamento incerto (Polacanthidae é um hipotético agrupamento de anquilossauros, adicionalmente aos consensuais Nodosauridae e Ankylosauridae; esta temática será abordada num post futuro), um Ankylosauria incertae sedis (Vickaryous et al., 2004; Pereda-Superbiola et al., 2005) ou mesmo nomen dubium, ou seja, o próprio nome científico é de atribuição duvidosa e, como tal, posto em causa (Carpenter, 2001).

Este problema filogenético levanta questões também do ponto de vista evolutivo, desconhecendo-se a relação com os anquilossauros mais derivados que prosperaram durante o Cretácico e entre as formas mais basais do grupo. O estudo detalhado em curso deste dinossauro, e de um novo esqueleto, mais completo e articulado, certamente ajudará a responder a estas questões e clarificar a evolução dos anquilossauros



Carpenter, K., Miles, C., and K. Cloward. 1998. Skull of a Jurassic ankylosaur (Dinosauria). Nature, 393: 782-783. https://www.nature.com/articles/31684

Carpenter, K. 2001. Phylogenetic analysis of the Ankylosauria; 455-483 in K. Carpenter (Ed.), The Armored Dinosaurs; Indiana University Press, Bloomington & Indianapolis, USA.

Galton, P. M. 1980. Partial skeleton of Dracopelta zbyszewskii n. gen. and n. sp., an ankylosaurian dinosaur from the Upper Jurassic of Portugal. Geobios 13: 825-837. https://doi.org/10.1016/S0016-6995(80)80081-7

Galton, P. M. 1983. Armored dinosaurs (Ornitischia: Ankylosauria) from the Middle and Upper Jurassic of Europe. Palaeontographica A, 182: 1-25.

Kirkland, J. I., and K. Carpenter. 1994. North America's first pre-Cretaceous ankylosaur (Dinosauria) from the Upper Jurassic Morrison Formation of Western Colorado. Brigham Young University Geology Studies, 40: 25-42. http://www.dinochecker.com/papers/Mymoorapelta-north-americas-first-pre-cretaceous-ankylosaur_Kirkland_et_al_1994.pdf

Pereda-Superbiola, X., Dantas, P., Galton, P. M., and J. L. Sanz. 2005. Autopodium of the holotype of Dracopelta zbyszewskii (Dinosauria, Ankylosauria) and its type horizon and locality (Upper Jurassic: Tithonian, western Portugal). Neues Jahrbuch für Geologie und Paläontologie-Abhandlungen, 235(2): 175-196. https://www.schweizerbart.de/papers/njgpa/detail/235/82943/Autopodium_of_the_holotype_of_Dracopelta_zbyszewskii_Dinosauria_Ankylosauria_and_its_type_horizon_and_locality_Upper_Jurassic_Tithonian_western_Portugal

Vickaryous, M. K., Maryańska, T., & Weishampel, D. B. 2004. Ankylosauria. In: Weishampel, D. B., Dodson, P., & Osmólska, H., (eds.). The Dinosauria (Second Edition). University of California Press: Berkeley, 363-392.

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