sexta-feira, fevereiro 28, 2020

Anquilossauro português é o mais completo do Jurássico

Anquilossauro português é o mais completo do Jurássico


No passado mês de Outubro, tivemos o privilégio de participar no mais importante congresso internacional de Paleontologia de Vertebrados, organizado pela Society of Vertebrate Paleontology, e que, em 2019, decorreu em Brisbane, na Austrália. Estes eventos são sempre uma excelente oportunidade de apresentação dos últimos avanços científicos nesta área e troca de ideias entre pares, bem como possíveis colaborações com colegas de todo o mundo. Além disso, é sempre um prazer rever amigos de longa data e iniciar novas amizades.

A estadia durou três semanas e foi muito produtiva, desde logo pela divulgação dos primeiros resultados do nosso trabalho que tem vindo a ser desenvolvido durante um projecto de doutoramento que se foca num espécime de dinossauro anquilossauro do Jurássico Superior, descoberto em 2012 nas arribas costeiras de Mafra (resumo disponível aqui). Foi também possível aceder às colecções do Museu de Queensland, em Brisbane, e do Museu Australiano, em Sydney, de modo a observar exemplares de anquilossauros australianos, estes do Cretácico Inferior, nomeadamente o anquilossauro mais completo do Hemisfério Sul e o mais primitivo (Arbour e Currie, 2016), o Kunbarrasaurus ieversi Leahey et al. 2015. Esta investigação foi ainda distinguida com uma bolsa de viagem para estudantes oferecida pela SVP, a Jackson School of Geosciences Student Member Travel Grant, que permitiu a deslocação à Austrália.

Esquerda: o estudante de doutoramento da FCT-NOVA João Russo posa junto ao poster com os primeiros resultados do novo exemplar (foto: Alexandre Guillaume); Direita: observação de espécimes de anquilossauro nas reservas do Museu de Queensland (foto: Kristen Spring).
Estes dinossauros são extremamente raros a nível mundial no Jurássico Superior, existindo não mais que uma mão cheia de exemplares, praticamente todos dos EUA. Em Portugal já era conhecido um exemplar deste grupo, que pode ser visitado no Museu Geológico, em Lisboa, e que em 1980 (Galton) recebeu o nome científico de Dracopelta zbyszewskii ("draco", do Latim "dragão"; "pelta", do Latim "escudo", alusivo um pequeno escudo utilizado por soldados da Grécia Antiga; "zbyszewskii" homenageia Georges Zbyszewskii, um dos mais prolíficos e importantes geólogos e paleontólogos durante o século XX em Portugal). 

O novo espécime, que faz parte das colecções da FCT-NOVA, é o segundo de anquilossauro para Portugal e encontra-se articulado, preservando pelo menos metade do esqueleto. Uma ocorrência como esta é extremamente rara e requereu um intenso trabalho de preparação laboratorial de modo a revelar tudo o que se esconde debaixo da matriz rochosa, que ainda decorre no laboratório do Museu da Lourinhã, um processo que contou também com a colaboração dos laboratórios da FCT-NOVA e do Parque dos Dinossauros da Lourinhã. E os primeiros resultados são extraordinários. O esqueleto está mais completo do que inicialmente se pensara, com a maior parte do esqueleto axial articulado, faltando apenas parte da cauda. Acresce ainda ossos dos membros, nomeadamente ambos os fémures e o úmero direito, bem como parte das cinturas pélvica e escapular (leia-se, ílio e escápulocoracóides, respectivamente). Mas, provavelmente, o elemento mais importante é a presença do crânio praticamente completo, algo único no registo fóssil português para dinossauros. Crânios deste tipo de dinossauros para o Jurássico são extremamente raros, conhecendo-se apenas outro, nos EUA. A nossa investigação conclui assim que se trata do mais completo esqueleto de anquilossauro da Europa e, para o Jurássico, do mais completo até agora conhecido no mundo. É também o dinossauro mais completo de Portugal. Desconhece-se ainda com exactidão, contudo, se este será um segundo espécime de Dracopelta zbyszewskii, ou uma nova espécie para a Ciência.

Representação aproximada do esqueleto (FCT-UNL 702) com os ossos conhecidos até agora a vermelho. Adaptado de Scott Hartman, 2011.
Este dinossauro apresenta um conjunto de características que o tornam muito importante para compreensão da evolução deste grupo de dinossauros, na medida em que as análises preliminares efectuadas indicam uma posição na árvore filogenética deste grupo muito próxima da divisão entre os dois principais ramos de anquilossauros, os anquilosaurídeos (caracterizados pela moca na cauda, como por exemplo o Ankylosaurus) e os nodosaurídeos (caracterizados por grandes espinhos laterais e sem moca na cauda, tais como o Nodosaurus ou o Polacanthus). De realçar as importantes implicações que a descrição deste dinossauro poderá vir a ter também na dispersão global dos anquilossauros e o papel central da Ibéria durante o Jurássico Superior.

Abaixo transcreve-se o resumo apresentado no congresso:


"Ankylosaurs are very rare in Upper Jurassic and their record is restricted to five genera. Among them, is the poorly known incertae sedis Dracopelta zbyszewskii from the Upper Tithonian of Portugal.
Here we present a new specimen recovered in the coastal cliffs near the beach of Porto da Calada, about 40 km North of Lisbon, in a light gray, fine to medium grained sandstone, close to the top of the Lourinhã formation, Upper Tithonian. It consists of a nearly complete skull, with maxillary teeth, at least eleven articulated dorsal vertebrae with proximal half of ribs, ten articulated anterior caudals, mostly complete and articulated synsacrum, several fragments of disarticulated and broken ribs, both femora articulated in the acetabulum, partial ilia with attached pelvic shield, right humerus missing the proximal end, partial right scapulocoracoid, over 180 osteoderms (lateral, caudal and dorsal, most in situ) of various size (0.5-18 cm), at least 40 ossified tendons mostly attached to the vertebrae, and partial pelvic shield. This specimen (FCT-UNL 702), still under preparation, is one of the most complete Jurassic ankylosaurs.
Many of the ankylosaurian traits are present: medially inset maxillary tooth row; dorsal expanded proximal T-shaped ribs; posteriormost dorsal vertebrae fused to form a rod; horizontal hypertrophied preacetabular process, showing attachment scar of a posterior dorsal rib; robust humerus with deltopectoral crest extending mid shaft; distally positioned ridge-shaped fourth trochanter; extensive dermal armor (scutes, lateral plates and pelvic shield); and large hollow-based lateral plates.
The femoral head is separated from greater trochanter by a distinct slope which is diagnostic of Nodosauridae, but contrary to these, the posterior width of the skull is twice the width across the orbits. The phylogenetic position of the Portuguese specimen is not yet fully understood, but likely close to the split between the two major clades: Nodosauridae and Ankylosauridae. Also, it is still unclear if this is a second specimen of the sympatric and coeval
D. zbyszewskii."

Referências:



Arbour, V. M., and Currie, P. J. 2016. Systematics, phylogeny and palaeobiogeography of the ankylosaurid dinosaurs, Journal of Systematic Palaeontology, 14(5), 385-444. https://doi.org/10.1080/14772019.2015.1059985 


Galton, P. M. 1980. Partial skeleton of Dracopelta zbyszewskii n. gen. and n. sp., an ankylosaurian dinosaur from the Upper Jurassic of Portugal. Geobios, 13(3), 451-457. https://doi.org/10.1016/S0016-6995(80)80081-7

Leahey, L. G., Molnar, R. E., Carpenter, K., Witmer, L. M., and Salisbury, S. M. 2015. Cranial osteology of the ankylosaurian dinosaur formerly known as Minmi sp. (Ornithischia: Thyreophora) from the Lower Cretaceous Allaru Mudstone of Richmond, Queensland, Australia. PeerJ 3:e1475.https://peerj.com/articles/1475/


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