Entrevista ao Jornal i:
Dinossauros. Sorte geológica pôs a Lourinhã no mapa
por Marta F. Reis , Publicado em 25 de Fevereiro de 2011
Octávio Mateus é uma referência na paleontologia internacional. Até a Fundação Jurássico, do realizador Steven Spielberg, reparou neste caçador de ossos de dinossauro
Não fosse uma espécie de fado geológico - já explicamos - Octávio Mateus não estaria a percorrer connosco os corredores do Museu da Lourinhã. "Estes foram os meus primeiros fósseis, tinha nove anos", diz, e aponta dentes de dinossauro numa das primeiras vitrinas. O espaço guarda pérolas da etnologia como antigas formas de supositórios e fósseis dignos de um grande museu de história natural: a ala dedicada ao jurássico abre com uma réplica gigante do Miragaia longicollum, descoberto em 2009 na aldeia de Miragaia, a cinco quilómetros dali. Hoje Octávio Mateus tem 36 anos e a Lourinhã é uma referência na paleontologia internacional. A última prova não é um fóssil inédito - o paleontólogo já baptizou oito espécies - mas uma bolsa da Fundação Jurássico, criada por Steven Spielberg para devolver à ciência parte dos lucros da famosa saga em que dinossauros ressuscitados conseguem tomar o mundo, pelo menos o do megalómano John Hammond.
Para Octávio Mateus, esta é a segunda bolsa patrocinada pelo "Parque Jurássico". Desta vez, o projecto é assinado também pelo aluno de doutoramento Emanuel Tschopp e passa por ir ao Museu dos Dinossauros de Aathal, perto de Zurique, digitalizar a três dimensões esqueletos de saurópodes, grandes dinossauros de pescoço longo. "É mais o charme", admite o paleontólogo, já que o cheque de 3 mil dólares chega apenas para reconstruir os passos desta espécie. Havia muito mais por fazer, por exemplo um grande museu do jurássico, plano na gaveta há mais de dez anos - e com ele grande parte do património paleontológico descoberto em Portugal.
Estamos sentados nos escritórios depois de espreitar o laboratório onde se limpam os fósseis ou os embriões mais antigos de que há registo - 30 fósseis de projectos de dinossauro (o segundo maior ninho do mundo) com 150 milhões de anos. Começa a aula de jurássico.
Porquê a Lourinhã? "Não quero dizer sorte, porque na ciência não há acasos", responde Octávio Mateus. "Quando se abriu o Atlântico Norte, os sedimentos começaram a afundar. Criaram-se bacias em que os esqueletos são cobertos de detritos, mais tarde tornando-se fósseis. Toda a nossa orla costeira ocidental é o resultado do preenchimento de mares interiores, de lagoas", explica. Entra o fado que trouxe aos anais científicos espécies tão nossas como um Lourinhanosaurus antunesi, a primeira baptizada pelo paleontólogo em 1998. "Por várias vicissitudes da geologia, as rochas estão sempre a ser erguidas e afundadas. Temos a sorte de actualmente termos exactamente o terreno no nível certo para fazer estas descobertas: não subiu o suficiente para ser erodido, nem desceu o suficiente para os dinossauros estarem lá em baixo." A sorte estende-se do cabo Mondego ao cabo Espichel, com reservas mais pequenas no Algarve e na costa alentejana, em Sines. Mas a Lourinhã é o epicentro, pela vegetação que existia na altura e, factor importante, pela equipa de amadores e depois profissionais que desde os anos 70 deitou as mãos ao terreno. "Ou seja, também existiram dinossauros, presumo eu, no Minho, em Trás-os-Montes, no Alentejo interior, mas aí infelizmente não temos terrenos do tempo dos dinossauros. Os que estão à superfície são ainda mais antigos que os dos dinossauros. O que estivesse por cima foi erodido e desapareceu para sempre."
Um parque jurássico português? O projecto existe e já foi proposto à câmara da Lourinhã, à FCT, e a quem quisesse ouvir. A ideia não seria difícil de comprar, havendo dinheiro. Octávio Mateus não é homem de poupar nas palavras. "Por quilómetro quadrado devemos ser o país com mais dinossauros do mundo", resume. "Em Espanha, com património muito menor do que o nosso, fizeram muito mais." Os argumentos para a paleontologia deixar de ser o "primo pobre" da ciência nacional são muitos. "É impossível falar da evolução das plantas com flor em qualquer texto sem falar dos fósseis de Portugal. Para falar da origem dos mamíferos, com 150 milhões de anos, Portugal é espectacular. Temos uma população extraordinária de trilobites gigantes." E ainda há muito por escavar, mesmo por aqui? "Se formos para o campo descubro um", desafia. "Onde?", pergunta a curiosidade. Octávio Mateus muda de tom. "Temos de ter cuidado com a preservação dos locais. Infelizmente temos fósseis que vão parar ao estrangeiro, que desaparecem." Ladrões de fósseis? "Sim. É uma preocupação que temos de ter. A legislação portuguesa ainda é muito parca sobre a protecção do património paleontológico, o que faz com que seja difícil alertar as autoridades. Há pouco enquadramento legal para poderem actuar. Sei de um caso de um colega que descobriu coisas que foram parar à Holanda e ainda não regressaram. Está prometido há dois anos."
A coisa mais estranha Nunca lhe apareceu um hominídeo pela frente? "Já encontrei ossos humanos em Angola." Um cemitério? "Não, numa ravina", ri, e eram "contemporâneos". De resto, para além de levar com tempestades de areia com ventos de 90 km/h no deserto de Gobi, na Mongólia, e de um osso de dromedário em Angola o ter feito puxar pelos "terabytes" de memória anatómica e histológica (as palavras caras da profissão) para perceber de que espécie se tratava - não existem camelos no país - uma das cenas mais caricatas passou-se no Laos. "Tivemos de sacrificar um porco porque o dinossauro que estávamos a escavar era considerado o búfalo sagrado que puxa o sol todos os dias. Quando se cansa e morre, cai. Eram os ossos deles."
No pátio interior do museu, Octávio Mateus mostra as pegadas por tratar ao lado de vasos. Aponta as arestas com aquela certeza incompreensível para um leigo. "Eu próprio sou incrédulo. A natureza pode pregar-nos partida e coisas que possam parecer fósseis não o são. O fóssil tem uma textura própria, uma cor diferente, é mais difícil enganarmo-nos. No caso das pegadas, se tenho dúvidas não lhes mexo."
Já que o motivo da visita é a bolsa de Spielberg, supomos que ressuscitar um dinossauro seja o desejo secreto de um paleontólogo. "Já o fazemos. Nós somos os únicos caçadores que em vez de matar damos vida. Conseguimos estudá-los, perceber como eram, o que faziam."
Virem-lhes roubar os embriões para tirar ADN não é uma preocupação. Concretizar a ficção parece-lhe "praticamente" impossível, porque ninguém se atreve a condenar os avanços científicos. "O ADN está muito fragmentado, o que fazemos com as partes que faltam? E se conseguirmos, quem produz o ovo? Em que ambiente de incubação?" As perguntas não têm resposta, ainda. Seria o fim do homem? "A única coisa que sabemos hoje é que a extinção dos dinossauros permitiu que nós existíssemos. Permitiu a evolução dos mamíferos." A ideia de uma sexta extinção, mesmo que significasse milhares de fósseis para os paleontólogos do futuro, preocupa-o, como defende que deve preocupar toda a gente. "De qualquer forma, a vida continua. Por muito que tentássemos, jamais conseguiríamos matar a vida toda. Mas isso não é prémio de consolação se não estivermos cá."
Para Octávio Mateus, esta é a segunda bolsa patrocinada pelo "Parque Jurássico". Desta vez, o projecto é assinado também pelo aluno de doutoramento Emanuel Tschopp e passa por ir ao Museu dos Dinossauros de Aathal, perto de Zurique, digitalizar a três dimensões esqueletos de saurópodes, grandes dinossauros de pescoço longo. "É mais o charme", admite o paleontólogo, já que o cheque de 3 mil dólares chega apenas para reconstruir os passos desta espécie. Havia muito mais por fazer, por exemplo um grande museu do jurássico, plano na gaveta há mais de dez anos - e com ele grande parte do património paleontológico descoberto em Portugal.
Estamos sentados nos escritórios depois de espreitar o laboratório onde se limpam os fósseis ou os embriões mais antigos de que há registo - 30 fósseis de projectos de dinossauro (o segundo maior ninho do mundo) com 150 milhões de anos. Começa a aula de jurássico.
Porquê a Lourinhã? "Não quero dizer sorte, porque na ciência não há acasos", responde Octávio Mateus. "Quando se abriu o Atlântico Norte, os sedimentos começaram a afundar. Criaram-se bacias em que os esqueletos são cobertos de detritos, mais tarde tornando-se fósseis. Toda a nossa orla costeira ocidental é o resultado do preenchimento de mares interiores, de lagoas", explica. Entra o fado que trouxe aos anais científicos espécies tão nossas como um Lourinhanosaurus antunesi, a primeira baptizada pelo paleontólogo em 1998. "Por várias vicissitudes da geologia, as rochas estão sempre a ser erguidas e afundadas. Temos a sorte de actualmente termos exactamente o terreno no nível certo para fazer estas descobertas: não subiu o suficiente para ser erodido, nem desceu o suficiente para os dinossauros estarem lá em baixo." A sorte estende-se do cabo Mondego ao cabo Espichel, com reservas mais pequenas no Algarve e na costa alentejana, em Sines. Mas a Lourinhã é o epicentro, pela vegetação que existia na altura e, factor importante, pela equipa de amadores e depois profissionais que desde os anos 70 deitou as mãos ao terreno. "Ou seja, também existiram dinossauros, presumo eu, no Minho, em Trás-os-Montes, no Alentejo interior, mas aí infelizmente não temos terrenos do tempo dos dinossauros. Os que estão à superfície são ainda mais antigos que os dos dinossauros. O que estivesse por cima foi erodido e desapareceu para sempre."
Um parque jurássico português? O projecto existe e já foi proposto à câmara da Lourinhã, à FCT, e a quem quisesse ouvir. A ideia não seria difícil de comprar, havendo dinheiro. Octávio Mateus não é homem de poupar nas palavras. "Por quilómetro quadrado devemos ser o país com mais dinossauros do mundo", resume. "Em Espanha, com património muito menor do que o nosso, fizeram muito mais." Os argumentos para a paleontologia deixar de ser o "primo pobre" da ciência nacional são muitos. "É impossível falar da evolução das plantas com flor em qualquer texto sem falar dos fósseis de Portugal. Para falar da origem dos mamíferos, com 150 milhões de anos, Portugal é espectacular. Temos uma população extraordinária de trilobites gigantes." E ainda há muito por escavar, mesmo por aqui? "Se formos para o campo descubro um", desafia. "Onde?", pergunta a curiosidade. Octávio Mateus muda de tom. "Temos de ter cuidado com a preservação dos locais. Infelizmente temos fósseis que vão parar ao estrangeiro, que desaparecem." Ladrões de fósseis? "Sim. É uma preocupação que temos de ter. A legislação portuguesa ainda é muito parca sobre a protecção do património paleontológico, o que faz com que seja difícil alertar as autoridades. Há pouco enquadramento legal para poderem actuar. Sei de um caso de um colega que descobriu coisas que foram parar à Holanda e ainda não regressaram. Está prometido há dois anos."
A coisa mais estranha Nunca lhe apareceu um hominídeo pela frente? "Já encontrei ossos humanos em Angola." Um cemitério? "Não, numa ravina", ri, e eram "contemporâneos". De resto, para além de levar com tempestades de areia com ventos de 90 km/h no deserto de Gobi, na Mongólia, e de um osso de dromedário em Angola o ter feito puxar pelos "terabytes" de memória anatómica e histológica (as palavras caras da profissão) para perceber de que espécie se tratava - não existem camelos no país - uma das cenas mais caricatas passou-se no Laos. "Tivemos de sacrificar um porco porque o dinossauro que estávamos a escavar era considerado o búfalo sagrado que puxa o sol todos os dias. Quando se cansa e morre, cai. Eram os ossos deles."
No pátio interior do museu, Octávio Mateus mostra as pegadas por tratar ao lado de vasos. Aponta as arestas com aquela certeza incompreensível para um leigo. "Eu próprio sou incrédulo. A natureza pode pregar-nos partida e coisas que possam parecer fósseis não o são. O fóssil tem uma textura própria, uma cor diferente, é mais difícil enganarmo-nos. No caso das pegadas, se tenho dúvidas não lhes mexo."
Já que o motivo da visita é a bolsa de Spielberg, supomos que ressuscitar um dinossauro seja o desejo secreto de um paleontólogo. "Já o fazemos. Nós somos os únicos caçadores que em vez de matar damos vida. Conseguimos estudá-los, perceber como eram, o que faziam."
Virem-lhes roubar os embriões para tirar ADN não é uma preocupação. Concretizar a ficção parece-lhe "praticamente" impossível, porque ninguém se atreve a condenar os avanços científicos. "O ADN está muito fragmentado, o que fazemos com as partes que faltam? E se conseguirmos, quem produz o ovo? Em que ambiente de incubação?" As perguntas não têm resposta, ainda. Seria o fim do homem? "A única coisa que sabemos hoje é que a extinção dos dinossauros permitiu que nós existíssemos. Permitiu a evolução dos mamíferos." A ideia de uma sexta extinção, mesmo que significasse milhares de fósseis para os paleontólogos do futuro, preocupa-o, como defende que deve preocupar toda a gente. "De qualquer forma, a vida continua. Por muito que tentássemos, jamais conseguiríamos matar a vida toda. Mas isso não é prémio de consolação se não estivermos cá."
1 comentário:
Em uma palavra: parabéns! ;)
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