quinta-feira, maio 08, 2008

Grandes linhas de pensamento na paleontologia de vertebrados: Extant Phylogenetic Bracket



Como é que se podem reconstruir tecidos moles em espécies extintas? A resposta a esta pergunta – sem recorrer aos raros tecidos moles preservados no registo fóssil – é muito difícil. Todo o cuidado é pouco! Isto por uma razão simples: é que assumirmos premissas erradas (ou fracamente suportadas), levam a conclusões erradas. Stephen J. Gould tem uma metáfora engraçada que frisa precisamente isso: “O nariz e as orelhas servem tão perfeitamente bem para colocar os nossos óculos”. O que Gould pretende dizer é: pouco interessa quão perfeitamente bem uma estrutura se adequaria a uma função que lhe poderíamos imaginar. Ou, trocando por miúdos, o lombo do cavalo não serve para os humanos lhe montarem em cima, nem os cães servem para os levarmos à rua; isso são propósitos que nós lhe damos, mas que não têm necessariamente que existir para aquilo que pensámos que poderia funcionar… Se não houver uma base teórica sólida para a reconstrução dos tecidos moles em animais que já não existem corremos o risco de inventarmos “costas de cavalos que servem para os humanos montar”. Essa base sólida deve-se hoje em dia a Larry Witmer, um prestigiado paleontólogo agora na Universidade do Ohio, que arranjou uma solução inteligente para não assumirmos premissas falsas nestas situações. A essa solução ele decidiu chamar: Extant phylogenetic bracket, ou num português macarrónico e fazendo uso dos meus pobres poderes de tradução: parênteses filogenético a partir dos seres vivos actuais. Esta solução é inteligente porque para além de ser ridiculamente simples, adequa-se com grande robustez à realidade da vida. Em que é que consiste então? Antes de mais, um ou dois conceitos-base que precisam de ser explorados: (i) árvore filogenética; (ii) clado; (iii) sinapomorfia. Em bem sei que estas palavras devem ter um cariz meio alienígena para a maioria dos leitores, mas dada a sua importância para a explicação desta história do parênteses tem mesmo de ser, e como dizia O’Neill: o que tem de ser, tem muita força.

Comecemos pela árvore filogenética. Nada melhor que o grego para dar uma ajuda: filo (amigo) + genética (“fazer nascer”, creio que ‘origem’ também não fica mal). Portanto, uma árvore filogenética é uma árvore dos amigos com a mesma origem. Não sei se foi bem conseguida esta etimologia, mas bom serve para o que quero dizer: estas árvores - compostas por vários ramos - dão-nos as relações entre os seres vivos. Ou se quisermos fazer jus à metáfora acima, dão-nos a ideia de quão “amigos” os seres vivos são entre eles, ou quão próximos estão eles na sua família… é ao fim e ao cabo uma genealogia, em que os ramos que compões a árvore não o avô e a avó Joaquina, mas sim espécies de animais e plantas que partilham características em comum.

E ora, daqui saltamos logo de seguida para o conceito de clado. Não pertencem ao “meu” clado todos os que não são da minha família. O senhor dali da frente no clube de vídeo não pertence ao “meu” clado, porque não possui um sobrenome “Araújo”. Na ilustração que disponibilizo a bactéria não faz parte do clado Vertebrata (dos vertebrados); mas a ave, o crododilo extinto, o peixe e homem sim!

E daqui salta logo o outro: o que é que todos os seres têm em comum neste exemplo à excepção da bactéria? Têm a coluna vertebral. A coluna vertebral é uma característica partilhada por todos os vertebrados, e daí o nome. A coluna vertebral é uma sinapomorfia dos vertebrados.

OK, explicada a terminologia passemos ao que interessa. Suponhamos que tínhamos encontrado um fóssil de uma espécie extinta de crocodilo, mas que infelizmente só tínhamos encontrado o seu crânio… Será razoável pensar num crocodilo extinto que não tivesse coluna vertebral? Só porque não tínhamos encontrado o resto do seu corpo fossilizado? Não porque, apesar de tudo, quer os peixes quer os humanos – que vivem actualmente – partilham com os restantes vertebrados uma coluna vertebral. Logo, não há razão nenhuma para pensar que um crocodilo só pelo facto de estar extinto (e de só termos encontrado o crânio) possa não ter coluna vertebral… De certo modo o parênteses serve para balizar as espécies (ou taxa) que partilham a mesma característica. De modo seco e bruto: num mesmo clado, se uma sinapomorfia é partilhada por duas espécies que vivem actualmente, então essa característica é também partilhada por uma espécie extinta.

Apesar deste raciocínio ser quase demasiado simples, só foi posto ao serviço da paleontologia na década de 1990… faz lembrar a lei zero da termodinâmica… como é que nunca ninguém se tinha lembrado?

O exemplo que dei do crocodilo, é meramente ilustrativo e só pretende explicar a lógica que lhe está por trás. Bons exemplos de situações em que o Extant phylogenetic bracket tem sido utilizado são os publicados pelo próprio inventor do conceito. Larry Witmer, perguntou-se um dia: onde ficaram as narinas dos dinossauros? E fazendo uso deste jogo lógico concluiu que as narinas nos dinossauros, salvo algumas excepções, ficariam na parte mais dianteira do seu crânio (Witmer 2001). E o seu raciocínio foi: existem aves actualmente => existem crocodilos actualmente => todos eles são arcossauros => todos eles na sua maioria têm as narinas na parte dianteira do crânio => os dinossauros são arcossauros (logo do mesmo clado que crocodilos e aves), então os dinossauros tinham as narinas na parte dianteira do crânio.

Será que conseguem arranjar mais exemplos deste género?

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